Um dia, uma menina disse assim:
- Quero voar.
E um a migo dela, com quem ela estava a brincar respondeu-lhe:
- Voar é para os pássaros.
E disse a menina
- Eu tenho a certeza de que era capaz. Se treinasse muito, tenho a certeza de que era capaz.
E respondeu-lhe o amigo:
- Capaz eras, mas tinhas de treinar para aí, para aí uns trezentos anos.
- Trezentos anos? Ora bolas, daqui a trezentos anos já estou muito velha para voar. Sei lá onde estou daqui a trezentos anos! Eu queria voar era já.
- Sem te treinares?
- E os aviões, treinam-se? Não se treinam… Mal estão acabados de fazer começam logo a voar.
- Ah, mas os aviões são conduzidos por um piloto. E o piloto treina-se.
- Isso é verdade. Mas os pássaros, por exemplo, não se treinam e sabem voar.
- Ai isso é que se treinam, vão para o campo treinar-se. É por isso que se diz “um campo de treinos”. Os pássaros começam com o salto em altura, depois treinam o salto em comprimento, depois o salto em largura, depois o salto à vara, e a seguir vai-se tirando a vara aos bocadinhos, sem eles repararem e pronto, a certa altura já sabem voar, os pássaros. Bom, nota que com as pessoas é muito mais complicado do que com os pássaros. Para já não temos asas.
- Não temos asas mas temos braços!
- Então experimenta dar aos braços.
- Já estou a dar aos braços.
- Estás a voar?
- Não.
- Então já vês que é difícil voar.
- Ah, mas posso pôr umas asas postiças. Da próxima vez que for comer frango, não como as asas e ponho-as nos braços. Depois, dou às asas e voo.
- Não voas nada, porque os frangos não conseguem quase voar.
- Ai não? Então o que fazem?
- Sei lá o que fazem; o que é que tu achas que os frangos fazem?
- Não sei, sei lá. Andam para ali sem fazer nada.
- Pois é, os frangos não voam.
- Pois é. Realmente se eu quiser voar, o melhor é eu apanhar um avião. Dá menos trabalho.
- Pois dá. Eu ando a juntar um escudo por semana para dar a volta ao mundo de avião.
- Um escudo por semana? Por esse andar nem daqui a trezentos anos tens dinheiro que chegue para isso.
- Tenho, tenho. Daqui a trezentos anos tenho…
Sérgio Godinho, em "A Caixa". Ilustrações de Joana Quental
2 comments:
Adorei esta história...Ri-me no final! Muito bom post:P
Voar é coisa de gente, espero que saibas disso. Voar nas cidades é particularmente arriscado. E, portanto, saboroso. Coisas de gente pouco arrumada. Pelo menos por dentro, onde há ondas todo o tempo. Mesmo que por fora estejamos impecavelmente fardados e arrumados.
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