Friday, June 29, 2007

acordar





nos teus olhos
está a noite
já passada,

nos teus lábios
o murmúrio
de um beijo,

e eu, deitada,
ouço sussurrar
a madrugada

Thursday, June 28, 2007

olhar


Maria Helena Vieira da Silva, Máquina óptica

Não preciso de perguntar o que
me dizem os teus olhos quando
os olho; nem te olho para que,
com os teus olhos, um só olhar

tudo me diga. O que me dizes
esconde-se no fundo que não vejo
quando me olhas, para que
tudo o que vejo me mostre

o fundo dos teus olhos. E
quando te peço que os feches, para
que um outro fundo se abra,

o que me dizes é o que
não sei se os teus olhos dizem,
quando o dizes nos teus olhos.

Nuno Júdice

voltar

Quando ouço esta música entro num outro universo, ou numa outra dimensão... e fico, por muito tempo, a flutuar...
Olhos fechados, música bem alta, coração aberto... viagem...



Rodrigo Leão, Voltar

Wednesday, June 27, 2007

calor


Miró, figuras na noite

Ela queria muito que ele lhe perguntasse se queria ir ver o mar. E queria que ele também lhe dissesse que já o desejava há muito tempo. E queria responder-lhe vamos agora, ou vamos quando quiseres, ou sempre que quiseres, porque não quero outra coisa. Ou dizer-lhe já devíamos ter ido, já devias ter falado nisso, estivemos a perder tempo.
E depois saíam os dois, no carro dele, porque assim é que deve ser.
É ele que a conduz, que os conduz.
Ela não lhe disse que o sitio para onde a leva é a praia onde ela tanto queria ir, nunca lhe falou desse lugar mágico, onde busca o sossego, nem lhe contou as histórias que lá viveu, o que sentiu ou o que sonhou.
Mas é para lá que ele a leva. Como se dela soubesse já tudo.
Hoje foram enganados pelo Inverno. O dia nasceu com ares de Primavera. Eles já não percebem se o calor que sentem é de fora, ou do sol que deles brota.
Ela saiu do carro e, ainda em silêncio, já na areia, estendeu-lhe a mão. Caminharam assim, durante muito tempo, sem falar, a sentir apenas as ondas, o mar, os dedos entrelaçados, o calor da pele dele, o calor da pele dela…
Ela gosta de o ver assim. Ele fica muito quieto, a olhar para longe. O rosto, sério e meigo, iluminado pelo olhar dele, pelo olhar dela…
Ela quer parar o tempo. Guardar este instante, guardá-lo a ele, sentenciar esta memória com prisão perpétua. Pára, diz-lhe ela, ainda em silêncio, não te mexas, quero-te assim, sonhado…
E ele a sentir, o calor da pele dele, o calor da pele dela…

Tuesday, June 26, 2007

economia



Corda da roupa de um economista...

Monday, June 25, 2007

fim de dia


Esta podia ser uma imagem como outra qualquer de um pôr-do-sol. Mas não é. Para mim não é. Porque é o meu pôr-do-sol. Na minha praia. Lá ao fundo fica o meu mar.
Parece uma posse tola, porque ninguém pode ter só para si um pôr-do-sol, uma praia ou o mar… Ou pode, se essa praia está guardada dentro de um coração, se essa praia é um baú de boas memórias…
Ou pode, se é nesse mar que se mergulha em busca de força, se é esse mar que é fonte de coragem e determinação…
Ou pode, se é neste pôr-do-sol que está a luz que ilumina o caminho, que auxilia em cada passo…
Este não é uma imagem como outra qualquer…

Sunday, June 24, 2007

prazer de viver


Paul Klee, Jardins do Sul


É o prazer de viver que dispersa, suprime a concentração, paralisa todo o impulso para a grandeza.

Mas sem prazer de viver... Não, a solução não existe... A menos que seja uma solução fazer de um grande amor uma raiz e nele encontrar a fonte de vida sem o castigo da dispersão.


Albert Camus, in "Cadernos"

Saturday, June 23, 2007

serviço público


23 de Junho é o dia das Nações Unidas para o Serviço Público.

Em 2000 foi criado o Prémio das Nações Unidas para os Serviços Públicos, que é o mais alto reconhecimento internacional à excelência em serviços públicos. O prémio contempla as realizações criativas e contribuições das instituições de serviços públicos para uma administração pública mais eficaz e responsável, em países do mundo todo, sendo atribuído em três categorias:

1. Melhoria da transparência, responsabilidade e capacidade de resposta do serviço público;
2. Melhoria na prestação dos serviços;
3. Uso das tecnologias de informação e comunicação no Governo (e-Government).

Os prémios são distribuidos por instituições ou organismos públicos que a ele se candidatam, sendo as candidaturas analisadas pela Divisão de Administração Pública e Gestão do Desenvolvimento das Nações Unidas.

Em 2006, os prémios da primeira categoria foram para o Ruanda, Singapura e Holanda, da segunda para Zambia, India, Canadá, Brasil e da terceira para a Austrália, Belgica e Emiratos árabes Unidos. Foi ainda distinguido um organismo da República da Coreia com o Prémio Inovação. (clique sobre o título para mais informações)

Em 2007 os prémios serão entregues no próximo dia 26 em Viena, durante o 7º Forum Global sobre Reinvenção do Governo. O fórum será realizado de 26 a 29 de Junho de 2007.

pirilampo e os deveres da escola



Ilustrações de Helena Zália


"Na curta caminhada até casa, David ia a pensar que aqueles dois dias tinham sido os dias mais felizes da sua vida. Primeiro, por ter encontrado a gatinha, e depois, pela descoberta de como era bom fazer tudo mais depressa e melhor do que fazia antes.
Aqueles eram os seus colegas de brincadeiras nas férias mas, em tempo de aulas, era raro vir brincar com eles por demorar sempre tanto com os deveres. David pensava com os seus botões:
- O que eu tenho andado a perder... Podia ter vindo tantas vezes...
Apesar de ter feito tudo o que a professora tinha mandado, quer na escola quer em casa, aquele dia tinha parecido mesmo um dia de férias.
- Ainda falta muito para o Verão mas vou ter muitos dias como este! - e foi com esta decisão na cabeça e a sua gatinha Pirilampo nos braços que o David entrou em casa."

João Roque, em Pirilampo e os deveres da escola


Assim, até se sente mais vida a vida...


Friday, June 22, 2007

dias bons


Edvard Munch, O Sol


"A quem está de bem com Deus, até o vento apanha a lenha."
Provérbio



Às vezes corre tudo bem. Mesmo quando não esperamos. Parece que é maré de sorte...
Outras há em que tudo o que acontece é feio, andamos o dia inteiro a tropeçar num caminho que, de repente, se faz cheio de pedras.
Mesmo nesses dias acontecem coisas boas.
E acontecem as coisas boas que não teriam acontecido se tudo tivesse corrido bem. E, na maior parte das vezes, são esses os acontecimentos que, mais tarde, valorizamos nas nossas vidas. Aqueles que, por serem inesperados, se tornam em experiências tão maravilhosas que nos dão força para afastar as pedras do caminho, para fazer de todos os dias, dias muito, muito bons...

Thursday, June 21, 2007

prometido


Andy Wharol, Torso

Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema
e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.

Natália Correia

música

Hoje é Dia Europeu da Música.
Iris, dos GooGooDols, da banda sonora de City of Angels.
Acompanhada de algumas imagens. Para ouvir, ver e sentir...
Porque cada instante que se vive, cada momento que se sente, vale a pena...

Wednesday, June 20, 2007

laranja


"Fiquei um bocado a aproveitar o fresco. Descasquei uma laranja. Falámos sobre qualquer coisa que era mais ou menos importante naquele momento. Mas isso foi há muito tempo. O céu era lindo do mundo"

José Luis Peixoto, in Cemitério de Pianos



Há momentos que se guardam. Para sempre. Perpetuados por sensações que conseguimos repetir.
Talvez por isso goste tanto de descascar laranjas. Porque o cheiro que me fica preso na pele devolve-me a memória do meu avô, com quem tantas vezes partilhei os gomos de um fruto apanhado da laranjeira, descascado com as pontas dos dedos...

ternura


Todos os anos, na passagem de ano, um dos meus propósitos para o ano seguinte é de dizer a todos os que amo que os amo. Porque saber é diferente de sentir, e há dias em que saber-nos amados não basta. Há dias em que é preciso que alguém nos mergulhe em ternura e nos diga "amo-te!" ...
Tenho falhado. Não porque não sinta amor, mas porque a boca cala aquilo que o coração grita. Mas agora começa a fazer-me falta dizer, começa a fazer falta sorrir e, olhos nos olhos, dizer "amo-te!". E sei que a alguns tem feito falta que eu diga, que eu mostre, que eu faça com que o mesmo ar que respiramos transporte os sons...a... mo...te...
Hoje apeteceu-me até escrever aqui o nome de todas as pessoas que amo. Mas ia ficar um texto muito, muito grande... E cada pessoa que amo é tão única, tão especial...

Monday, June 18, 2007

fala

Fala a sério e fala no gozo
Fá-la pela calada e fala claro
Fala deveras saboroso
Fala barato e fala caro
Fala ao ouvido fala ao coração
Falinhas mansas ou palavrão
Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe
Fala francês fala béu-béu
Fala fininho e fala grosso
Desentulha a garganta levanta o pescoço
Fala como se falar fosse andar
Fala com elegância - muito e devagar.

Alexandre O'Neil

Sunday, June 17, 2007

silêncio



Hoje não é o Dia Mundial Para a Luta Contra a Violência Doméstica.
Mas um dia por ano não basta. A luta deve ser todos os dias...

rumo...




Caminhou até à areia. Tirou os sapatos e as meias e sentiu-se acordar quando os pés tocaram na areia gelada. No Inverno é sempre assim. A areia está sempre húmida e fria. Soube-lhe bem o arrepio. Talvez assim conseguisse pensar. Há horas que não se conseguia organizar, que a única palavra que, de uma forma quase obsessiva, lhe ocupava a cabeça era vida. Vida. Vida. Vida. Ela e a vida. E desmembrou a palavra. E desmembrou a vida. Muito mais do que uma palavra. Naquele momento sentia que era o rumo, o caminho traçado… Soube que não podia desistir. E tinha o mar ali tão perto… A sua fonte de força estava ali, a fazer-se notar.
Não era a primeira vez que ele lhe batia. Mas, naquele momento, prometeu a si própria que seria a última. Mesmo que doesse ainda mais reagir. Prometeu a si própria ser sempre verdadeira, com os outros e principalmente consigo própria, pensar verdade, acreditar verdade e ser verdade. Ser independente, autónoma, não vergar, não baixar a cabeça…Decidir sempre com coragem, reagir… não vergar, reagir…
Sabia que tinha de mudar muita coisa. Não lhe bastava fazer obras. Teria de começar a demolir. De acabar com as memórias de tantos maus tratos durante tanto tempo. Para depois se podes reconstruir, para se fortalecer, para poder, de novo, viver. E para poder continuar a amar. Porque queria ainda amar. Amar sempre, muito, sem limites, entregar-se, viver amor com toda a intensidade possível… Sorriu. E, sorrindo, voltou para casa…

o alquimista


“Certo dia, chegou a uma cidade um alquimista, que anunciou ser capaz de transformar qualquer metal em ouro. Foram-lhe entregues dois pedaços de metal e, sob as gargalhadas de uns e a admiração de outros, colocou-os num recipiente e verteu sobre elas o conteúdo de um frasco que trazia no saco. Permaneceu alguns segundos em silêncio e o fenómeno aconteceu: as peças metálicas tornaram-se douradas. Quando lhe perguntaram qual o segredo para produzir ouro, retirou do saco um livro, entregou-o a uma criança e partiu tranquilo. No livro estava a fórmula, que era complexa. Exigia água destilada mil vezes no silêncio da madrugada e ingredientes que deviam ser colhidos em noites especiais em praias distantes.
No início toda a população pôs mãos à obra, mas depois alguns foram desistindo. Era muito penoso ficar mil noites em silêncio, esperando a água destilar. Os que foram desistindo tentaram convencer os outros a desistir também. Só um pequeno grupo prosseguiu com o trabalho, apesar de serem ridicularizados pelo resto da população. Continuaram a destilar água e a fazer viagens juntos para encontrar os ingredientes. O tempo correu e a quantidade de histórias divertidas e de situações que passaram juntos cresceu. E o grupo tornou-se cada vez mais unido. Tornaram-se grandes amigos. Até que um dia, todos juntos, viraram a última página do livro, onde se lia:”Se todas as instruções foram seguidas, têm agora o líquido que, quando derramado sobre qualquer metal, o transforma em ouro. Entretanto, também já perceberam que a maior riqueza não está no produto final obtido mas sim no caminho percorrido. O que nos torna infinitamente ricos não é a quantidade de ouro que conseguimos produzir, mas os momentos que compartilhamos com os verdadeiros amigos.”

Saturday, June 16, 2007

(RED)


Este é um convite para apoiar uma iniciativa que procura aumentar o consumo de produtos (RED).
Os produtos (RED) foram idealizados por Bono, dos U2 e Bobby Shriver, presidente da empresa DATA (Debit, Aids, Trade, África), como forma de envolver empresas privadas no apoio ao Fundo Global, criado pelas Nações Unidas para a luta contra a SIDA, malária e tuberculose.
A American Express, Apple, Converse, Motorola, Gap e Giorgio Armani, produzem produtos com o logotipo (RED), dando uma percentagem dos lucros da venda dos produtos ao Fundo Global. Muitos dos produtos de roupa são feitos realmente em África e espera-se que, dentro de pouco tempo, outras empresas se associem a estas.

Friday, June 15, 2007

Thursday, June 14, 2007

fix you

Hoje ouvi esta música no carro, logo de manhã. Ao longo do dia não me saiu da cabeça e andei a trauteá-la. Resolvi então ouvi-la de novo, com mais atenção. E valeu bem a pena... Destaquei um pedaço da letra. Para partilhar...



"And high up above or down below
When you're too in love to let it go
If you never try then you'll never know
Just what you're worth"

Coldplay, Fix you

credo do educador optimista

Cecilia Costa, sem título

Prometo a mim mesmo tentar:

Ser tão forte que nada pode perturbar a minha paz de espírito.
Transmitir saúde, felicidade e prosperidade a cada um dos meus alunos
Prestar atenção ao lado mais bonito das coisas e fazer com que o meu optimismo seja visível
Pensar só no melhor, trabalhar para o melhor, e esperar somente o melhor.
Ser tão entusiasta com o êxito dos meus alunos como com o meu próprio êxito como educador
Perdoar os erros do passado e concentrar-me nas realizações do futuro.
Mostrar-me sempre alegre e oferecer um sorriso aos seres humanos com que me cruzar
Dedicar tanto tempo a tentar melhorar que não tenha tempo para criticar as outros.
Ser tão forte que não me preocupe, tão nobre que não me descontrole, tão resistente que não Tenha ansiedade e tão feliz que não desfaleça perante as adversidades
Trabalhar com energia para que os meus alunos estejam, hoje e sempre, apaixonados pela vida.



Cristian D. Larson, 1912


Eu sei, eu sei... não estamos no início do ano lectivo, estamos no fim...Sei que tenho de me lembrar de tudo isto em Setembro, mesmo antes de começar o próximo ano. Mas é importante fazer o balanço do ano que passou. Para sermos capazes de melhorar, precisamos de perceber o que falhou e o que já fazemos bem... É necessário ter a capacidade de corrigir os erros e de tentar fazer ainda melhor aquilo que já sai bem. Por isso não faz mal nenhum olhar para o que, todos os anos, prometo a mim própria que vou tentar. E prometo que, no próximo ano, vou tentar de novo. Os meus alunos merecem...

Wednesday, June 13, 2007

abraça-me



Francisco Cardoso Lima, She Lives 483, 2002



Há momentos em que tudo parece parar.
Nada acontece.
Até o tempo fica suspenso, flutuante...
Fico só a sentir a calmaria na beleza de um momento.
Quieta. À espera.
Abraça-me com a força com que gostas de mim...

Tuesday, June 12, 2007

tempo


Salvador Dali



O tempo pergunta ao tempo quanto tempo o tempo tem.
O tempo responde ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem...

Monday, June 11, 2007

ela ela ela




Roy Lichtenstein (American, 1923-1997). The Kiss, 1962.

Tenho um vício... O meu despertador toca, habitualmente, meia hora antes da hora a que preciso de me levantar. Para eu poder ter meia hora de silêncio, de paz, para me deixar transportar pela leitura. Não resisto a partilhar um pedacinho do que agora me acompanha o despertar...

"(...)
Havia então um momento em que pousava o meu pé direito em frente ao poial da casa, sobre as pedras do passeio. E caminhava de encontro às ruas. Aproximava-me. E as ruas caminhavam de encontro a mim. Quando chegava à pensão, sabia com muita força que ela estava lá dentro. Ela ela ela. Essa certeza simples era cheia de milagres e quase me admirava por não encontrar as paredes da pensão envoltas em chamas, ou em qualquer tipo de vozes igualmente grandiosas. Então, a minha espera era serena. Eu sabia que o tempo nada podia contra a nossa vontade inevitável, insaciável, indomável. Havia brisas que chegavam dos cantos negros da noite e que me tocavam o rosto. Havia aquele verão nocturno. Eu esperava e, num único momento: os passos dela do outro lado do muro, o meu coração perdido dentro de mim, os movimentos dela desenhados no silêncio, eu perdido em mim. E, num único momento, ela, finalmente, o peso do corpo dela a ser muito mais do que apenas peso, ela, a forma do corpo dela a ser muito mais do que apenas forma, finalmente, eu quase a sentir-me chorar, e ela, finalmente, o corpo dela a ser muito mais do que apenas o corpo dela, finalmente, dentro dos meus braços. A sua cabeça tombada sobre o meu ombro. Os seus cabelos a tocarem-me a face.
(…) Nas primeiras noites, caminhávamos, corríamos para longe antes de nos abraçarmos. Depois, deixámos de conseguir esperar. Abraçávamo-nos como se explodíssemos um no outro e, só depois, caminhávamos, corríamos. Durante uma semana, tivemos um banco de jardim e tivemos todas as sombras que o cobriam. A seguir tivemos a minha chave a abrir o portão da oficina, a escuridão e o cemitério de pianos. Os nossos corpos.
(...)"

José Luis Peixoto, in Cemitério de Pianos

Sunday, June 10, 2007

ausência


Superfície de Rhea, lua de Saturno, do site da NASA

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

Sophia de Mello Breyner Andresen

o peixe e o mar



Uma vez pediram a um peixe para falar do mar.
- Fala-nos do mar - disseram-lhe.
- Dizem que é muito grande o mar - respondeu o peixe. - Dizem que sem ele morreríamos. Não sou o peixe mais indicado para vos falar do mar. Eu, do mar, só conheço bem são estes dez metros à superfície. É só deles que vos posso falar. É aqui que passo o meu tempo, quase sempre distraído. Ando de um lado para o outro, à procura de comida ou simplesmente às voltas com o meu cardume. No meu cardume não se fala do mar. Fala-se das algas, das rochas, das marés, dos peixes grandes e perigosos, dos peixes pequenos e saborosos e de que temperatura fará amanhã. O meu cardume é assim: eles vão e eu vou atrás deles.
- Mas tu, que és peixe, nunca sentiste o mar?
- Creio que o sinto, às vezes, passar por minhas guelras. Umas vezes o sinto, outras não. Às vezes o sinto, quando não me distraio com outras coisas. Fecho os olhos e fico sentindo o mar. Isso tudo de noite, claro, para que os outros não vejam. Diriam que sou louco por dar tempo ao mar.
- Conheces o mar, portanto. Podes falar-nos do mar?
- Sei que é grande e profundo, mas não vos quero enganar. Sei de peixes que já desceram ao fundo do mar. Quando os ouvi falar, percebi que não conheço o mar. Perguntai a eles, que vos saberão falar do mar. Eu nunca desci muito fundo. Bem, talvez uma ou duas vezes... Um dia as ondas eram fortes que eu tive de me deixar levar fundo, para não morrer. Nunca tinha estado lá e nunca esquecerei que lá estive. Apenas vos sei falar bem da superfície do mar...
- Foi ruim, quando desceste? Por que voltaste à superfície?
- Não foi ruim. Foi muito bom. Havia muita paz, muito silêncio. Era como se lá fosse minha casa, como se ali estivesse inteiro.
- Por que não voltaste lá para o fundo? Por preguiça?
- Às vezes acho que é preguiça, outra vezes acho que é medo.
- Medo? Mas tu não disseste que era bom? Medo de que?
- Medo do desconhecido, medo de me perder. Aqui à superfície já estou habituado. Adquiri um certo 'status' para mim mesmo. Controlo as coisas ou, pelo menos, tenho a sensação de as controlar. Lá embaixo não sei bem o que pode acontecer. Estou todo nas mãos do mar.
- Tiveste medo quando chegaste ao fundo do mar?
- Não tive medo algum. Era tudo muito simples... E no entanto agora tenho medo... Mas eu não cheguei ao fundo do mar! Apenas estive menos à superfície.
- E o que dizem os outros que lá estiveram?
- Dizem coisas que eu não entendo. Dizem que não é preciso ir para saber. E dizem que não há nada mais importante na vida de um peixe.
- E explicam como se vai?
- Aí é que está. Explicam que não se chega lá por esforço, que só podemos fazer esforço em deixar-nos ir. Que é só o mar que nos leva ao mar.
Então veio uma corrente mais forte que o fez descer. O peixe tentou lutar contra ela com todas as forças que tinha, à medida que via distanciarem-se as coisas da superfície. Talvez para sempre... Mas depois fechou os olhos, confiou e já sem medo deixou-se ir.


Nuno Tovar de Lemos, em O Principe e a Lavadeira

Saturday, June 9, 2007

coisas do amor



Nunca se sabe o que é para sempre, sobretudo nas coisas do amor.
E era uma coisa do amor, isto tudo.
São tão estranhas as coisas do amor que não se compreendem por inteiro.
Tem de se estar sempre a fazer suposições.
Nunca se sabe como e até que ponto e até quando.
Esta obsessão chega para impedir a vida, o amor pode impedir o amor, amaldiçoá-lo como um espectro.

Pedro Paixão, em Nos teus braços morreríamos

memórias...

Cinema Paraíso. É um elogio ao amor, à amizade, à juventude, ao cinema e à vida.
Quando o vi pela primeira vez, em 1989, na sala Bebé, no Porto, emocionei-me ao ver a cena final. Pela sua intensidade, pela música, pela forma como mostra a importância das memórias guardadas, tantas vezes esquecidas…
Emocionei-me da segunda vez que o vi. E da terceira. E da quarta. E de todas as outras em que não consegui resistir-lhe, para avivar as minhas próprias memórias. E ao longo de todos estes anos, sempre que revejo a cena final, aflora-me a lágrima fácil ao canto do olho…
Vale a pena ver… Ouvir... E sentir...

Friday, June 8, 2007

oceanos






Hoje é Dia Mundial dos Oceanos.
Foi criado em 1992, durante a Cimeira da Terra, na Conferência do Rio.
Os oceanos geram a maior parte do oxigénio que respiramos, fornecem alimentos, regulam o clima...
E são, para alguns, fonte de paz, calma, inspiração...

Thursday, June 7, 2007

beijo


Gustav Klimt, O Beijo

Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mais beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
É dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
irá de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja.
Jorge de Sena

rir


Miró, O sorriso das asas flamejantes

Rir? Pensamos alguma vez em rir? Quero dizer rir verdadeiramente, além da brincadeira, da troça, do ridículo. Rir, gozo imenso e delicioso, gozo completo.Dizia à minha irmã ou dizia-me ela a mim — anda, vamos brincar a rir? Estendíamo-nos lado a lado numa cama e começávamos. A fingir, claro. Risos forçados. Risos ridículos. Risos tão ridículos que nos faziam rir. Então chegava o verdadeiro riso, o riso inteiro, que nos transportava no seu imenso rebentar. Risos desatados, retomados, empurrados, estalados, risos magníficos, sumptuosos e loucos… E ríamos até ao infinito do riso dos nossos risos… Oh! riso! riso do gozo, gozo do riso; rir é tão profundamente viver.



Milan Kundera, O livro do riso e do esquecimento

Wednesday, June 6, 2007

máquina do mundo


O Universo é feito essencialmente de coisa
nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.
Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.
António Gedeão

âncora


A vida não se desenrola sozinha.
Precisa de quem a conduza por caminhos sem perigos, que a transporte para outros lugares, em loucas aventuras.
Precisa de ser invadida por sorrisos, por olhares carregados de rastos de luz.
Precisa de quem nos diga que não é tarde, que, de olhos nos olhos, traga até nós a linguagem do coração, que nos abra janelas para o amor. Que nos faça sentir paixão, que nos faça rir…
Precisa de quem se transporte para o nosso interior, fazendo de nós pessoas mais bonitas e melhores, de quem nos vire do avesso, nos tire as nuvens do olhar e nos diga “chega-te a mim e deixa-te estar”.
Precisa de quem nos ajude a pensar que poder é acreditar que se pode. Porque sempre que acreditamos somos capazes de fazer acontecer.
Precisamos apenas, todos nós, de uma âncora, de alguém que na nossa vida acredite em nós e nos faça acreditar, para que a magia aconteça e assim, a vida se torne, todos os dias, num banho de sol povoado por laços coloridos.
“E talvez seja isso que a vida tem de mais desconcertante: não são os ventos nem as marés, só as âncoras...nos permitem navegar...”

Monday, June 4, 2007

palavras


Sonhei contigo. Sonhei que chamavas por mim, através de uma porta entreaberta. Dizias o meu nome, daquela forma única e quase mágica como o pronunciavas, como se o cantasses… Mas, afinal, é isso que fazes com todas as palavras. Transformas cada palavra em música, usas cada uma com a serenidade de, em cada frase, encerrares uma melodia…
E foi com essa serenidade que me ensinaste a relação entre as vírgulas e os mas, que me disseste quando um verbo quer ser seguido de um de ou de um de que, ou até mesmo só de um que… foi com a doçura de quem canta que me falaste da diferença entre ter de e ter que… e tantas vezes, calmamente, me falaste dos símbolos e das regras para rever um texto… e outras vezes, de olhar espelhando entusiasmo, justificaste ( porque nenhuma palavra ou frase é um acaso) quando se deve escrever senão, ou se não, ou quando é demais, ou são os demais, ou porque sim… e por que não?
E quando eu me enganava, explicavas outra vez, não mais devagar e mais alto, mas sempre de outra maneira, para que eu aprendesse…
E todas as horas partilhadas foram poucas, porque tenho ainda tantas dúvidas! Tenho eu muito ainda que aprender e tu tanto para ensinar!
Mas mais do que, contigo, aprender das palavras, aprendi da vida. Mostraste-me que cantar as palavras não é mais do que cantar os sentidos, escrever textos é escrever a vida e escrever na vida e falar é falar de amor e deve ser feito com amor… Ensinaste-me, sobretudo, a ensinar com paixão, a viver com paixão, a sentir cada coisa boa que a maré trazia… e a deixar ir tudo de mau na corrente da maré vaza…

Sunday, June 3, 2007

poema


As coisas mais simples, ouço-as no intervalo
do vento, quando um simples bater de chuva nos
vidros rompe o silêncio da noite, e o seu ritmo
se sobrepõe ao das palavras. Por vezes, é uma
voz cansada, que repete incansavelmente
o que a noite ensina a quem a vive; de outras
vezes, corre, apressada, atropelando sentidos
e frases como se quisesse chegar ao fim, mais
depressa do que a madrugada. São coisas simples
como a areia que se apanha, e escorre por
entre os dedos enquanto os olhos procuram
uma linha nítida no horizonte; ou são as
coisas que subitamente lembramos, quando
o sol emerge num breve rasgão de nuvem.
Estas são as coisas que passam, quando o vento
fica; e são elas que tentamos lembrar, como
se as tivessemos ouvido, e o ruído da chuva nos
vidros não tivesse apagado a sua voz.
Nuno Júdice, in As Coisas Mais Simples, 2006

festejar


Sopra!
E agora... um desejo...

Saturday, June 2, 2007

eu não sei quem te perdeu

Hoje acordei a cantar. E apetece partilhar este poema...



Quando veio,
mostrou-me as mãos vazias,
As mãos como os meus dias,
Tão leves e banais.
E pediu-me
Que lhe levasse o medo,
Eu disse-lhe um segredo:
«Não partas nunca mais»

E dançou,
Rodou no chão molhado,
Num beijo apertado
De barco contra o cais.

E uma asa voa
A cada beijo teu,
Esta noite
Sou dono do céu,
E eu não sei quem te perdeu.

Abraçou-me
Como se abraça o tempo,
A vida num momento
Em gestos nunca iguais.

E parou,
Cantou contra o meu peito,
Num beijo imperfeito
Roubado nos umbrais.

E partiu,
Sem me dizer o nome,
Levando-me o perfume
De tantas noites mais.

E uma asa voa
A cada beijo teu,
Esta noite
Sou dono do céu,
E eu não sei quem te perdeu.

Pedro Abrunhosa

Friday, June 1, 2007

se



Se por um instante Deus se esquecesse de que sou uma marioneta de trapo e me oferecesse mais um pouco de vida, não diria tudo o que penso, mas pensaria tudo o que digo.Daria valor às coisas, não pelo que valem, mas pelo que significam.
Dormiria pouco, sonharia mais, entendo que por cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz.
Andaria quando os outros param, acordaria quando os outros dormem.
Ouviria quando os outros falam, e desfrutaria de um bom gelado de chocolate.
Se Deus me oferecesse um pouco de vida, vestir-me-ia de forma simples, deixando a descoberto, não apenas o meu corpo, mas também a minha alma.
Meu Deus, se eu tivesse um coração, escreveria o meu ódio sobre o gelo e esperava que nascesse o sol.
Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre as estrelas de um poema de Benedetti, e uma canção de Serrat seria a serenata que ofereceria à lua.
Regaria as rosas com as minhas lágrimas para sentir a dor dos seus espinhos e o beijo encarnado das suas pétalas...
Meu Deus, se eu tivesse um pouco de vida...
Não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas de quem gosto que gosto delas.
Convenceria cada mulher ou homem que é o meu favorito e viveria apaixonado pelo amor.
Aos homens provar-lhes-ia como estão equivocados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saberem que envelhecem quando deixam de se apaixonar!
A uma criança, dar-lhe-ia asas, mas teria que aprender a voar sozinha.
Aos velhos, ensinar-lhes-ia que a morte não chega com a velhice, mas sim com o esquecimento.
Tantas coisas aprendi com vocês, os homens...
Aprendi que todo o mundo quer viver em cima da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a encosta.
Aprendi que quando um recém-nascido aperta com a sua pequena mão, pela primeira vez, o dedo do seu pai, o tem agarrado para sempre.Aprendi que um homem só tem direito a olhar outro de cima para baixo quando vai ajudá-lo a levantar-se.
São tantas as coisas que pude aprender com vocês...


Autor desconhecido (atribuido a Gabriel Garcia Marques)