Monday, June 11, 2007

ela ela ela




Roy Lichtenstein (American, 1923-1997). The Kiss, 1962.

Tenho um vício... O meu despertador toca, habitualmente, meia hora antes da hora a que preciso de me levantar. Para eu poder ter meia hora de silêncio, de paz, para me deixar transportar pela leitura. Não resisto a partilhar um pedacinho do que agora me acompanha o despertar...

"(...)
Havia então um momento em que pousava o meu pé direito em frente ao poial da casa, sobre as pedras do passeio. E caminhava de encontro às ruas. Aproximava-me. E as ruas caminhavam de encontro a mim. Quando chegava à pensão, sabia com muita força que ela estava lá dentro. Ela ela ela. Essa certeza simples era cheia de milagres e quase me admirava por não encontrar as paredes da pensão envoltas em chamas, ou em qualquer tipo de vozes igualmente grandiosas. Então, a minha espera era serena. Eu sabia que o tempo nada podia contra a nossa vontade inevitável, insaciável, indomável. Havia brisas que chegavam dos cantos negros da noite e que me tocavam o rosto. Havia aquele verão nocturno. Eu esperava e, num único momento: os passos dela do outro lado do muro, o meu coração perdido dentro de mim, os movimentos dela desenhados no silêncio, eu perdido em mim. E, num único momento, ela, finalmente, o peso do corpo dela a ser muito mais do que apenas peso, ela, a forma do corpo dela a ser muito mais do que apenas forma, finalmente, eu quase a sentir-me chorar, e ela, finalmente, o corpo dela a ser muito mais do que apenas o corpo dela, finalmente, dentro dos meus braços. A sua cabeça tombada sobre o meu ombro. Os seus cabelos a tocarem-me a face.
(…) Nas primeiras noites, caminhávamos, corríamos para longe antes de nos abraçarmos. Depois, deixámos de conseguir esperar. Abraçávamo-nos como se explodíssemos um no outro e, só depois, caminhávamos, corríamos. Durante uma semana, tivemos um banco de jardim e tivemos todas as sombras que o cobriam. A seguir tivemos a minha chave a abrir o portão da oficina, a escuridão e o cemitério de pianos. Os nossos corpos.
(...)"

José Luis Peixoto, in Cemitério de Pianos

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